A recente onda de notícias sobre os avanços da Colossal Biosciences na manipulação genética, com o anúncio da “recriação” de lobos-terríveis, inflamou as discussões nas mídias sociais. Em um cenário científico e político frequentemente polarizado, é crucial analisar essa inovação sob a lente da Saúde Única – a intrínseca conexão entre a saúde humana, animal e ambiental – e suas implicações para o futuro do nosso planeta e, por que não dizer, para o futuro do nosso próprio bem-estar no Brasil e no mundo.
Desde a Revolução Industrial, a humanidade tem sido responsável por uma devastadora onda de extinções, desestabilizando ecossistemas e desencadeando o surgimento e ressurgimento de inúmeras doenças. A perda de cada espécie reverbera no delicado equilíbrio da natureza, com consequências muitas vezes imprevisíveis para a nossa própria saúde e bem-estar. No Brasil, por exemplo, a extinção de predadores naturais pode levar ao descontrole de populações de vetores de doenças, impactando a saúde pública em diversas regiões.
Nesse contexto, a iniciativa da Colossal Biosciences, embora envolta em controvérsia e críticas – que alertam para o risco de um Jurassic Park da vida real –, acende uma faísca de esperança. A intenção declarada não é reviver o passado por reviver, mas sim tentar trazer de volta espécies que possam desempenhar um papel na restauração do equilíbrio ecológico. A perspectiva da Saúde Única nos convida a considerar como a potencial restauração de espécies extintas, como o lobo-terrível, poderia influenciar a dinâmica de doenças e a saúde dos ecossistemas. A perda desses predadores, por exemplo, pode ter contribuído para o aumento de certas populações de herbívoros, alterando a vegetação e, indiretamente, afetando a disponibilidade de recursos e a propagação de patógenos que podem cruzar entre animais e humanos.
Essa perspectiva ganha ainda mais relevância quando confrontada com o conceito de limites planetários, brilhantemente explorado por Begon e Townsend em sua obra Ecologia de Indivíduos e Ecossistemas (2023). Os autores nos alertam para o ponto em que as atividades humanas ultrapassam a capacidade da Terra de se manter em um estado habitável, afetando processos biogeoquímicos, a camada de ozônio, o clima, o uso da terra e da água, a qualidade do ar e a integridade da biosfera. A perda de lobos-terríveis e outras extinções ao longo da história certamente contribuíram para o desequilíbrio de múltiplos limites planetários, como a integridade da biosfera e os fluxos biogeoquímicos, ao alterar as cadeias alimentares e a dinâmica populacional de outras espécies. A tentativa de “desextinção” poderia, teoricamente, ajudar a mitigar esses desequilíbrios ao restaurar funções ecológicas chave.
Vivemos inegavelmente no Antropoceno, uma era definida pela influência humana nos sistemas terrestres, contrastando com a estabilidade de 11.700 anos do Holoceno. O grande desafio da nossa época é construir uma estrutura baseada nesses limites para preservar ou, idealmente, restaurar as condições que tornaram a Terra um lar seguro. Os limites planetários – que incluem desde as mudanças climáticas e a poluição por novas entidades como microplásticos até a acidificação dos oceanos e a perda de biodiversidade – oferecem um mapa crucial para que líderes e tomadores de decisão tracem caminhos sustentáveis para o desenvolvimento social e a gestão ambiental, em um mundo onde os impactos da nossa ação frequentemente superam as ferramentas de mitigação.
A notícia da Colossal Biosciences revela que, através da análise de DNA antigo de lobos-terríveis extintos há 12 mil anos, a empresa realizou edições genéticas em lobos cinzentos, seus parentes vivos mais próximos. Essas modificações resultaram no nascimento de três filhotes com características físicas marcantes de seus ancestrais pré-históricos.
No entanto, a alegação de “desextinção” é recebida com ceticismo por diversos cientistas. Argumentam que o DNA antigo, fragmentado e danificado, serve apenas como um modelo limitado, e que os animais gerados são, na verdade, lobos cinzentos geneticamente modificados com algumas características do lobo-terrível. Há preocupações significativas sobre a viabilidade genética desses animais a longo prazo e sobre a complexidade do comportamento animal, que envolve tanto a genética quanto aspectos culturais transmitidos ao longo de gerações – algo que um animal geneticamente modificado pode não herdar. Além disso, levantam-se importantes questões éticas sobre a manipulação genética em larga escala e as possíveis consequências não intencionais para os ecossistemas.
A própria Colossal Biosciences, por meio de sua diretora científica Beth Shapiro, defende a relevância de criar “versões funcionais” de espécies extintas, mesmo que não sejam 100% geneticamente idênticas, com o objetivo de restaurar funções ecológicas perdidas. Os três filhotes, Rômulo, Remo e Khaleesi, viverão em uma reserva natural para estudo, o que levanta a questão sobre o papel e o futuro desses animais em um ecossistema natural já modificado pela ação humana. Quais seriam os riscos de introduzir esses animais em um ambiente onde seus nichos originais podem não existir mais ou onde podem competir com espécies nativas?
O debate suscitado pela Colossal Biosciences nos obriga a refletir sobre a nossa responsabilidade diante das extinções causadas pela ação humana. Como bem questiona o paleoecologista Nic Rawlence, banalizar a extinção com a promessa de um “retorno” pode enfraquecer a urgência de proteger a biodiversidade remanescente. A “ressurreição” de espécies não pode ser vista como uma licença para a destruição contínua do nosso planeta.
Em última análise, o avanço da Colossal Biosciences representa um ponto de inflexão. Se, por um lado, a manipulação genética de espécies extintas oferece um vislumbre de esperança na restauração de ecossistemas degradados e na promoção da Saúde Única, por outro, levanta sérias questões éticas, ecológicas e práticas. É fundamental que essa tecnologia seja desenvolvida e aplicada com rigor científico, transparência e uma profunda compreensão dos limites planetários, evitando promessas exageradas e garantindo que o foco principal permaneça na prevenção de futuras extinções e na conservação da biodiversidade existente. O futuro exige mais pesquisa, um debate ético aprofundado e uma regulamentação cuidadosa para que essa promessa não se torne uma ilusão perigosa.
* Willian Barbosa Sales é biólogo, Doutor em Saúde e Meio Ambiente e coordenador dos cursos de Pós-graduação área da saúde do Centro Universitário Internacional Uninter
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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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